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sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

kangosta vellha. cântico negro

 
 
 
 
Cântico Negro
 
"Vem por aqui" - dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
 De que seria bom que eu os ouvisse
 Quando me dizem: "vem por aqui!"
 Eu olho-os com olhos lassos,
 (Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
 E nunca vou por ali...
 A minha glória é esta:
 Criar desumanidades!
 Não acompanhar ninguém.
 — Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
 Com que rasguei o ventre à minha mãe
 Não, não vou por aí! Só vou por onde
 Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
 Redemoinhar aos ventos,
 Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
 A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
 E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.
Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
 Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos... 
Ide! Tendes estradas,
 Tendes jardins, tendes canteiros,
 Tendes pátria, tendes tetos,
 E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
 Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
 Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo. 
Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
 Ninguém me peça definições!
 Ninguém me diga: "vem por aqui"!
 A minha vida é um vendaval que se soltou,
 É uma onda que se alevantou,
 É um átomo a mais que se animou...
 Não sei por onde vou,
 Não sei para onde vou
 Sei que não vou por aí!
 
 José Régio
 
 

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