André Teodósio e a (in)fortuna do duplipensar
“Saber e não saber, ter consciência de completa veracidade
ao exprimir mentiras cuidadosamente arquitectadas, defender simultaneamente
duas opiniões opostas, sabendo-as contraditórias e ainda assim acreditando em
ambas; usar a lógica contra a lógica, repudiar a moralidade em nome da
moralidade, crer na impossibilidade da Democracia e que o Partido era o
guardião da Democracia; esquecer tudo quanto fosse necessário esquecer,
trazê-lo à memória prontamente no momento preciso, e depois torná-lo a
esquecer; e acima de tudo, aplicar o próprio processo ao processo. Essa era a
subtileza derradeira: induzir conscientemente a inconsciência, e então,
tornar-se inconsciente do ato de Hipnose que se acabava de realizar. Até para
compreender a palavra "duplipensar" era necessário usar o
duplipensar.” Orwell – 1984
André Teodósio escondendo em si mesmo o ninho de ratos,
inclui o estrangeiro que nascerá refém do berço de ouro da mesmice normativa,
grande Outro epidémico, alteridade dinamite, a vingança genética do destino. Ao
duplipensar as crimideias que revelam a biopolítica do homo sacer, André
renasce super-homem-bomba, aí onde o Outro e a identidade se anulam. Ser ou não
ser... será mesmo esta a questão? Não chega desmascarar a dimensão do ser como
identidade edificada sobre protocolos culturais e idiomáticos, que se distingue
do não-ontológico, de tudo aquilo que, fora do espartilho, se afirma como real,
tal como fez Deleuze. Por vezes, o diferente e informe irrompe no interior da
esfera ôntica, indistinto buraco negro de que nem a luz se livra. Quando os
deuses querem, o anarquista nasce coroado imperador, e Heliogábalo tem que
criar o máximo de contaminação pelo seu comportamento magnífico, indirectamente
regicida. A particular arrumação simbólica do não-ser procura
introduzir a diferença na tópica da alteridade subjectiva, proceder à sua
tradução para o nosso dialecto, para as formas gramaticais conhecidas, ou
colonizar o seu território semântico virgem, destruir e reconstituir parecido,
mas nunca igual, impedir a sua fusão, a multiplicidade indizível, descriminar
por nomeação, inventariar, cristalizar, solidificar para anular e abater,
destilar e manipular para renascer transgénica como satisfizer. Eis que a
tradução é traição e enfia constantemente o Outro nas suas botas ortopédicas.
Uma dessas ortopedias é o sistema artístico climatizado do capitalismo tardio,
campo de concentração galante, em que subjaz o travesti inclusivo, aglomerado aberrante
e politicamente correcto, claramente inofensivo, síndrome de Estocolmo, mimésis
da disparidade, ingénuo na sua recriação e encenação do multicultural,
deficiente perante o confronto de bolhas idiomáticas institucionais, anacrónico
e giro. Sentimos no discurso artístico o falar que pouco diz que se perceba, ou
que altere o mundo, quanto muito coincide com este de forma arbitrária, instala
a confusão de significados, o trocadilho irónico, ou o cansaço. A imaginação
perde liquidez e coagula como imaginário cego, e o idioma imaginário é a
antítese da língua fluida que escapa do aquário normativo. O idioma da arte já
não serve, é novilíngua extrema, traduzida como melhor convém à sociedade
maquilhada, onde as casas são construída de chocolate e as ruas colchas de
maçapão em croché. A dimensão cultural é sempre regida pela imposição da
biopolítica da linguagem. A domesticação do Outro, como se sabe, tem origem na
capacidade de lhe conferir nome e propriedade, impor e legitimar os predicados,
as regras da escrita que enformam o pensamento. Esta agressão de rapina pode
ser declarada, jurídica, marcial, erótica ou então, camuflada pelas
indulgências do universalismo humanista ou da generosidade acolhedora, mas é
sempre esta topologia colonial totalitária que delimita e espelha a cultura, e
é, por analogia inversa, a causa da centralidade excêntrica. Na cultura normativa da alteridade, logocentrismo da
diferença, que alguns chamam altermodernismo, ocorre o cruzamento secreto em
que se procria o híbrido sintético, o aborto proveta inclusivo, que nem chega a
ser a monstruosidade do demonstrável. Já estamos cientes que a biopolítica, com
todo o seu aparelho de reformatação do campo biológico, tem como missão
arquitectar o parque humano que nada exclui, totalitário conservatório de
espécies mortas, embebidas em formol. O sistema que se impôs como protector da
diferença também acaba por exercer a extinção das espécies. O flautista
democrático de Hamelin, já não é o genocida directo descarado e bruto de
antanho, é belo, tem entoações inebriantes, fascinantes, agrada a todos mas é
raticida disfarçado de delícia, ou trigo roxo da Monsanto. O genocídio discreto
é mais fácil, basta reinventar a guerra, escassez ou epidemia, distribuir
fármacos letais, diversificar a exposição ao risco de morte, falências
monetárias que propiciam a negligência médica, a fome, impedem o acesso a
tratamentos médicos, vaticinam listas de espera, ou pura e simplesmente a morte
por ostracismo político e social, inúmeras carências, o exílio, etc... A pena
capital da máquina biopolítica é possibilitada por intermédio da segregação de
mercado ao som do velho pífaro encantatório da evolução, que vai estabelecer a
hierarquia do mais forte sobre o mais fraco. Foucault demonstrou claramente a identidade do nazismo como
produto da filosofia biológica novecentista, a evolução das espécies. Darwin
invadiu o imaginário da cultura com o seu aparato de conceitos hegelianos
dualistas aplicados à regularização do monstro natural: noção hierárquica ao
longo da ramificação evolutiva, luta pela sobrevivência entre os animais, e
ainda a ideia ecológica colonialista, a segregação entre as espécies, etc... O
evolucionismo fragmentou o campo biológico como seu bisturi dialéctico.
Partindo desse facto, torna-se possível eliminar os coxos dessa corrida, matar
agradavelmente os freaks por razões naturais, esquecendo que o cume evolutivo é
outro precipício mortal. Por isso cada vez que somos confrontados com a
monstruosidade, é segundo as regras do naturalismo evolucionista que somos
obrigados a equaciona-la: os outros, as excêntricas impessoas, alimária da
selva, fracos e malandros, incapazes de compreender a nossa certeza, famélicos
aborígenes, feios porcos e maus, desempregados, imprestáveis, animais
selvagens, em tudo ratos menos na forma de gente, são seres que perderam a
corrida nesse grande jogo natural normativo. Mas e se o biólogo for o freak?
Como eliminar esta representação patética e criminosa?Se é patológico o pensamento não parar, enquanto não obtém
respostas para a nossa situação, então o André está enfermo, mas, peço por
favor, não o curem. André não te deixes vacinar! Já sabes que a lógica das
coisas não é a lógica das palavras. O que há a fazer é sempre exemplo criativo,
questionamento reiterado, dúvida, até descortinar os indícios do crime, apesar
da incerteza, convicção de que a ambiguidade é a origem da guerra conceptual, e
a batalha conceptual é a criatividade pura, postura contra a impostura, ou
melhor (para não cair em dualismos aristotélicos) uma postura que é impostura.
Tudo isso é urgente porque já manifestamos os sintomas da peste: a extinção da
inteligência, que não cresce no terreno estéril do entretenimento confortável,
o ócio intelectual produtivo mas nada criativo, a invadir os acéfalos cheios de
pensamentos de coisa nenhuma, burrocráticos e inermes. André está em palco, esse outro local incómodo do ser, mas
espalha pelo ar o aroma de nitroglicerina etérea. A cogitação representativa
imobiliza o pensamento na mimésis, tudo o que já foi pensado morreu, ou no fim
de contas leva um tiro, porque foi fossilizado pelas palavras. É preciso
transformar o pensamento em teatro. Sendo a realidade o fluxo (essa vitória
constante do freak) ao representa-la estamos sempre a revelar o que já foi, a
dar tiros falhados, e é por isso que o teatro se volta contra si mesmo e se
dobra em duplipensamento, através de idiomas fluentes que escapam à voracidade.
Quando ousarmos pensar o que será, podemos atingir não acertando, mas isso
pouco importa.
kangosta vellha